1 Introdução
A preocupação atual com a violência urbana tem atingido um padrão quase monopolista dos debates acerca da violência como um todo, deixando em segundo plano, questões cujo debate é crucial, mesmo para a produção de uma nova cultura quanto à condenação da violência como um mal em si.
A preocupação atual com a violência urbana tem atingido um padrão quase monopolista dos debates acerca da violência como um todo, deixando em segundo plano, questões cujo debate é crucial, mesmo para a produção de uma nova cultura quanto à condenação da violência como um mal em si.
Por mais que algumas iniciativas em determinadas áreas possam ser consideradas avanços, os problemas de fundo ainda não têm sido atingidos, inclusive por essa patente falta de atenção e debate, nos volumes e formas necessários à busca real por soluções concretas.
Observamos que a sociedade, mesmo parecendo criminalizar cada vez mais os atos de violência, ainda vê como banais inúmeras condutas reprováveis. E nesse sentido, muitas das políticas definidas, de combate a determinados tipos específicos de violência, não surtem efeitos reais, não cumprindo seu objetivo.
Quando da instituição do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), teve-se a sensação de solução para muitos dos problemas acerca da infância, inclusive e, sobretudo, os problemas de violência. Porém, vimos que o ECA tem sua efetividade reduzida, em razão da não adesão efetiva da sociedade à sua aplicação fática.
Tal fenômeno nos leva a um raciocínio imediato da não suficiência de matéria legislativa como tentativa de solução efetiva para a questão. Daí, termos em análise as inúmeras questões sociais e comportamentais que se relacionam à adequação da sociedade à matéria legislada e vice-versa, num caminho contínuo, de via dupla, a permitir a efetividade da norma resultante dos anseios daqueles que dela necessitam.
Sob essa visão, cabe analisar a aguda situação de violência contra a mulher, presente em nossa sociedade desde remotos tempos.
A mulher, nas sociedades antigas, em geral, sequer possuía um status de cidadania, independente de quaisquer outros critérios, sendo tratada como mera “propriedade” ou um ser incapaz, sob o domínio do “patriarca”, do pai, do marido, etc..
Nos tempos modernos, implicitamente, tivemos a manutenção de grande parte dessa concepção, tendo a mulher como espécie de objeto, sobre o qual se exercia a propriedade de forma plena, podendo, a figura do “chefe de família”, dispor-se de sua vida, integridade física e psicológica de forma livre, plena.
Ainda que conquistas tenham havido em diversas áreas, inclusive no mercado de trabalho, no ambiente educacional, dentre tantos, a realidade da mulher nos tempos atuais ainda é de extrema vulnerabilidade, ante a concepção patriarcal latente em nossa sociedade.
Ainda a pouquíssimo tempo, por exemplo, tínhamos na legítima defesa da honra, razão suficiente a justificar um homicídio cometido por um marido, contra sua esposa adúltera. E claro, a honra a ser defendida era algo próprio e exclusivo do homem, não se tolerando a inversão dessas posições.
E nesse contexto surgem significativos frutos da luta de mulheres em todo o mundo e no Brasil que, apesar da falta de efetividade por razões sociais ainda hegemônicas, nos apontam caminhos e possibilidades. A partir desses elementos, cabe analisar a realidade atual, bem como, os objetivos e caminhos a serem perseguidos, com a finalidade de efetivar aquilo que já se definiu como ideal: a igualdade material, em amplo aspecto, da mulher em nossa sociedade.
2 O combate à violência contra a mulher: uma realidade ainda incipiente
Com a Carta Política de 1.988, temos um significativo marco quanto aos direitos das mulheres, sobretudo com o reconhecimento nesta decisão política fundamental da sua condição de igualdade plena. Insculpido, sobretudo, no topo daqueles direitos e garantias ditos fundamentais, no inciso I, do artigo 5º, da Constituição Federal, dentre inúmeros outros pontos de reconhecimento de sua cidadania plena.
Tal marco não parece ser uma mera concessão do Estado, ou mesmo da visão hegemônica da sociedade, mas uma conquista das mulheres efetivada por contundente intervenção, por meio de organizada e efetiva organização, no processo de elaboração de nossa Carta Política.
Evidente que o reconhecimento formal de uma condição de igualdade e cidadania plenas, por si só, não foi, nem poderia ser, de modificar a realidade socialmente posta ao longo de toda a história. Entretanto, tal reconhecimento formal é, não só a criação da possibilidade jurídica de efetivação das conquistas, como também símbolo do resultado alcançado e alcançável por um processo de intervenção social organizada, contundente e efetiva.
Nesse mesmo rumo, a luta da mulher por dignidade e respeito, sobretudo no enfrentamento e combate à violência, tendo que “deve-se entender por violência contra a mulher qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado.” [1], teve diversos outros marcos anteriores e posteriores.
Como elemento central de análise, podemos adotar a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher – “Convenção de Belém do Pará (1.994)” [2]·. Tal convenção é, por inúmeras razões, significativo marco, por não só estabelecer proteções e garantias à mulher, mas também conceituar a violência de forma ampla e reconhecer o seu caráter de fenômeno social que necessita não apenas de um enfrentamento jurídico.
Neste ponto, a partir da Convenção de Belém do Pará, é que podemos perceber a necessidade de um efetivo trabalho em aspectos sócio-culturais no sentido de dar efetividade a aqueles direitos e garantias reconhecidos formalmente.
O entendimento correto acerca da conceituação de violência trazido pela referida Convenção, incluindo não apenas aqueles tradicionalmente reconhecidos, mas também as formas de violência psicológica remetem-nos à compreensão de um dos aspectos que induz a própria mulher a auto violentar-se, bem como praticar violência e garantir a violência socialmente imposta contra a mulher. Dessa deriva grandemente a produção e a reprodução da cultura da violência e da aceitação da violência perpetrada contra a mulher.
É assim que temos o aspecto de maior produção de entraves à erradicação da violência contra a mulher, visto que esta causa, sobremaneira, a inércia ante a prática daquelas duas imediatamente reconhecidas, quais sejam, a sexual e a física.
Observe-se que é da cultura da violência e da aceitação da violência contra a mulher a origem da não tomada da decisão de enfrentamento e denúncia das situações de violência sofrida, bem como, da não participação da mulher numa intervenção social ativa no combate, com vistas à erradicação da violência que lhe atinge.
Daí que mesmo ações significativas no aspecto jurídico não têm o condão de modificar efetivamente a realidade da violência contra a mulher. Inclusive, exemplar legislação como a lei “Maria da Penha”, Lei 11.340/2.006, não foi e não será capaz, por si só, de alterar essa realidade. Mais, a própria lei, caso analisada sob uma ótica sociológica, cuida em seu texto de uma tentativa de construção de uma cultura da não violência contra a mulher, partindo do princípio de aplicação da Teoria da Prevenção Geral Negativa[3].
Evidente, no entanto, que a mera ameaça da pena não é capaz de transmutar toda uma cultura histórica que influencia inclusive as próprias vítimas, sem o acompanhamento de inúmeras outras ações ativas e não meramente reativas, como a pena em si, capaz de formular uma nova forma de ver e pensar as coisas das relações sociais e o papel da mulher em nossa sociedade.
E observamos nesse sentido de produção de uma nova cultura de não aceitação da violência contra a mulher, ao menos pela própria vítima, o caminho apontado e trazido pela “Convenção de Belém do Pará”, sobretudo em seu artigo 7º, alínea “e”:, mas não observado concretamente em nossa política de enfrentamento a essa forma de violência, conforme segue:
“e. Tomar todas as medidas apropriadas, incluindo medidas de tipo legislativo, para modificar ou abolir leis e regulamentos vigentes, ou para modificar práticas jurídicas ou consuetudinárias que respaldem a persistência ou a tolerância da violência contra a mulher” (grifos nossos).
E ainda, o art. 8º, que nos traz:
“Os Estados partes concordam em adotar, em forma progressiva, medidas específicas, inclusive programas para:
a. fomentar o conhecimento e a observância do direito da mulher a uma vida livre de violência e o direito da mulher a que se respeitem e protejam seus direitos humanos;
b. modificar os padrões sócio-culturais de conduta de homens e mulheres, incluindo a construção de programas de educação formais e não formais apropriados a todo nível do processo educativo, para contrabalançar preconceitos e costumes e todo outro tipo de prática que se baseiem na premissa da inferioridade ou superioridade de qualquer dos gêneros ou nos papéis estereotipados para o homem e a mulher que legitimam ou exacerbam a violência contra a mulher;
c. fomentar a educação e capacitação do pessoal na administração da justiça, policial e demais funcionários encarregados da aplicação da lei, assim como do pessoal encarregado das políticas de prevenção, sanção e eliminação da violência contra a mulher;
(...)
e. fomentar e apoiar programas de educação governamentais e do setor privado destinados a conscientizar o público sobre os problemas relacionados com a violência contra a mulher, os recursos jurídicos e a reparação correspondente
g. estimular os meios de comunicação a elaborar diretrizes adequadas de difusão que contribuam para a erradicação da violência contra a mulher em todas as suas formas e a realçar o respeito à dignidade da mulher;” (grifos nossos).
Portanto, trata-se, em verdade, não da busca por soluções que permitam ao menos a tentativa de efetivação do combate à violência contra a mulher, mas tão somente de busca real dos objetivos táticos traçados, buscando as formas específicas de efetivação de cada um, visando à solução do diagnóstico já traçado dos entraves à política de erradicação da violência, com base nos métodos igualmente já traçados.
3 Conclusão
Notamos que o enfrentamento e o combate à violência contra a mulher não se trata de uma questão meramente jurídica, mas que tem no seu aspecto jurídico apenas uma finalização de um processo a dar cabo da erradicação deste mal quando socialmente possível.
Trata-se, portanto, de um mal cuja solução tornar-se-á possível apenas com a radical mudança
de um paradigma social historicamente enraizado em nossa cultura. É um processo cujos resultados não se medem de forma quantitativa objetivamente, nem mesmo de forma qualitativa em aspectos simples, pois não se pode dizer bem sucedido dos resultados de curto e médio prazo, tampouco se pode ter como consolidados possíveis reduções de índices inúmeros resultantes de processos imediatistas.
A construção de uma nova realidade social torna-se possível apenas por intermédio de uma profunda transformação cultural, resultante de extensivo e intensivo processo educacional e reeducacional, a partir das realidades postas e das realidades construídas num pensamento coletivo deturpante daquela realidade posta.
Dessa forma, a transformação passa, inevitavelmente, pela construção de uma identidade humanizada da mulher para a própria mulher, capaz de torná-la plena em cidadania e dignidade em seu próprio consciente, estabelecendo-a como agente transformador primeiro de um processo que a tem por objeto e sujeito centrais, mas que tem em toda a sociedade o ambiente constituído e constituível com a qual se relaciona este sujeito e objeto.
Assim, a erradicação da violência contra a mulher tem como passo primeiro a construção da imagem que a própria mulher vitimizada pela violência faz de si como vítima, bem como, da imagem que a mulher faz da violência como injusta, ilegítima e inaceitável.
O ponto central é a não sujeição passiva da mulher à situação de violência, sua atitude de reprovação ante o ato que a agride ou intimida.
Temos dessa fonte o foco irradiador de uma visão social de não aceitação do ato violento, de negação da condição de propriedade à mulher, concedendo-lhe um real status de indivíduo possuidor de uma dignidade intrínseca ao seu próprio ser, à sua própria condição humana.
E desse processo de auto-valorização e respeito próprio da mulher, temos o ponto de partida do processo educacional da sociedade como um todo, não só pela coação, mas pela conscientização, sobretudo das gerações mais contemporâneas, da condição de humanidade e dignidade inerente à condição humana, que a mulher, como tal, possui.
Trata-se da desconstituição da figura feminina como objeto, como algo a ser possuído, transmutando sua imagem naquilo que é a realidade, em um ser dotado de todos os sentimentos e necessidades sociais do ser humano.
A erradicação da violência contra a mulher só será possível ao Direito no momento em que a igualdade formalmente instituída pelas normas, tornar-se algo plenamente aceito pela sociedade como algo natural, com a mulher vendo-se como igual ao próximo e sendo vista como igual pelo próximo.
4 Bilbiografia
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal – Parte Geral. Curitiba: Lúmen Júris IICPC, 2006.
[1] Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, art. 1º.
[2] Adotada pela Assembléia Geral dos Estados Americanos em 6 de junho de 1.994, ratificada pelo Brasil em 27 de novembro de 1.995.
[3] Expressa na célebre teoria da coação psicológica de Feurbach, representa a dimensão negativa da Prevenção Geral: o Estado espera desestimular pessoas de praticarem crimes pela ameaça da pena. (CIRINO DOS SANTOS, Direito Penal – Parte Geral, 2.006, p. 459).
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