domingo, 23 de março de 2008

Um novo Paraguai está nascendo


Falta menos de um mês para o nascimento de um novo Paraguai, um novo país em que a democracia prevaleça, em que a voz popular possa ecoar e ser ouvida.

Há mais de 60 anos, o mesmo grupo político vem dirigindo o país. E não estamos aqui a falar em “mesmo grupo político” apenas no sentido de grupo de defesa dos mesmos interesses, como ocorre em quase toda a América Latina, mas de “mesmo grupo político” em sentido literal, numa espécie de apropriação absoluta do poder político de forma privada. Estamos falando do controle absoluto do Partido Colorado, tradicional representante dos setores mais conservadores do Paraguai. E é essa a realidade que atormenta aquele povo.

Não é preciso falar muito sobre o Paraguai para demonstrar a profunda tragédia social em que aquele país está mergulhado desde tempos imemoráveis. Não é necessário, portanto, dizer o quão nefasta é essa hegemonia política absoluta dessa oligarquia política colorada no Estado paraguaio.

É bem verdade que a tragédia social paraguaia tem raízes bem mais remotas, que nós brasileiros deveríamos melhor lembrar e conhecer, visto sermos dos maiores responsáveis. Estamos aqui falando do “Massacre do Paraguai”, erroneamente chamado em nossas terras de “Guerra do Paraguai”.

Apenas como rápida lembrança cabe apontar que tal massacre foi encabeçado pelo Brasil, sob as ordens da coroa britânica, contando com o apoio das armas de Argentina e Uruguai. Foi das maiores atrocidades da história até então, praticada por nossas forças armadas, no século retrasado, contra o país com economia e organização sócio-política mais avançada do continente.

Dessa chamada guerra, declarada sem razão pelo Brasil e aliados, sob ordens britânicas, sobra-nos a glorificação do banditismo facínora de Duque de Caxias, responsável pela política de extermínio de todos os paraguaios do sexo masculino, independente da idade, mesmo os recém nascidos ou nascituros, com o objetivo de dizimar aquela nação, impedindo-os de se perpetuar. E o responsável pelos massacres de homens, idosos, crianças, bebês e mulheres grávidas, como estratégia de extermínio, é ainda hoje o patrono de nossas forças armadas e dá nome a ruas, avenidas e tantas outras homenagens inimagináveis a qualquer um com um mínimo de bom senso.

Por outro lado, daquele criminoso episódio, restou aos paraguaios, donos do país mais desenvolvido do continente à época, o seu país arrasado, destruído, reduzido a escombros e sem sequer população suficiente para reconstruí-lo ou garantir a sobrevivência e reprodução daquele povo. Responsabilidade nossa, dos brasileiros.

A terra arrasada é sempre um lugar fértil para a proliferação do banditismo social, da corrupção, da opressão e das imensas desigualdades sociais. É comum nessas situações, o surgimento de pequenos grupos de indivíduos com visão individualista ao extremo, que inclusive buscam o apoio do agressor para ganhar em poder sobre o povo, destacando-se como dominante internamente e perpetuando a opressão, o massacre de seu povo. Essa história já vimos em tantos países ao longo da história, que nem mesmo é possível lembrar quantos.

E assim se deu com a história do Paraguai, que após a mais atroz agressão sofrida, viu-se dominado por uma reduzidíssima elite econômica e política, altamente opressora e ditatorial, extremamente subserviente a interesses estrangeiros.

Desde aquele momento, essa elite econômica e política foi aprimorando seus mecanismos de dominação e opressão, chegando ao modelo ditatorial sob organização partidária colorada, que dá as cartas no país de forma absoluta, abusando de expedientes violentos e criminosos. Não à toa, o Paraguai viu-se nos últimos tempos com presidentes assassinados, presos, depostos, envolvidos com crimes comuns, tráfico, roubo, assassinatos, dentre inúmeros outros crimes.

Foi sob tais práticas criminosas que o país vizinho viu um sem número de seus populares obrigados ao exílio, que para muitos já dura mais de 20 ou 30 anos, sem mais qualquer perspectiva de retorno. E foi sob esse regime que vimos o Paraguai submetendo-se de forma desavergonhada aos interesses estrangeiros, notadamente dos Estados Unidos e, subsidiariamente, do Brasil, que também atua de forma imperialista naquele país.

Trata-se, hoje, de um país que permite a instalação de uma base militar estadunidense, justamente em um dos pontos estratégicos para controle sobre o Aqüífero Guarani, maior fonte de água doce subterrânea do planeta. É o país que se deixou dominar pelo Brasil na construção da maior usina hidrelétrica do mundo, Itaipu, em que se viu destituído de sua soberania, obrigado a ceder o controle de suas águas e sua produção energética ao Brasil, para o qual é obrigado a vender, exclusivamente, sua energia por menos da metade dos preços de mercado ou os praticados no Brasil.

Nem só do controle por Estados estrangeiros padece o Paraguai, mas também pelo controle econômico estrangeiro privado, notadamente na questão agrária.

É o Paraguai um dos países de maior concentração agrária do planeta, com reflexos profundos na desigualdade social e mesmo no desenvolvimento econômico do país. Não fosse esse um grave problema por si só, some-se o fato de que o controle das grandes porções de terras agricultáveis do país sequer está em mãos dessa pequena elite econômica e política do país, sendo controlada, em verdade, pela mesma elite agrária brasileira, ou alguns de seus sócios.

Tal situação de absoluto controle privado brasileiro sobre as regiões agrárias do Paraguai leva aquele país à absurda situação de sequer ver internamente os recursos oriundos das culturas ali exercidas, não tendo sequer essa produção negociada em moeda paraguaia ou via sistema financeiro daquele país.

Temos então que as terras que lá produzem, com grandes extensões territoriais, acabam tendo sua produção comercializada através do Brasil ou exterior, com a movimentação financeira respectiva ocorrendo no sistema bancário brasileiro, sem que os recursos cheguem sequer a transitar pelo Paraguai, não rendendo divisas para o país, nem mesmo arrecadação concreta para os cofres públicos, em resumo, não gerando qualquer riqueza para o país. A esse país vizinho sobra tão somente o subemprego de bóias frias ou trabalhadores rurais não regulares, além dos camponeses desterrados, pelos mesmos métodos de pistolagem e grilagem que produziram as grandes concentrações agrárias no Brasil. Nem mesmo os poucos empregos qualificados no setor podem ser ocupados pelos paraguaios, que vêm tais vagas ocupadas exclusivamente por brasileiros ou outros estrangeiros, numa clara prática imperialista e de ocupação de uma parte de nossa elite econômica naquele país.

Somente esses elementos já explicariam a situação de absoluto caos social daquele país, sua miséria profunda e o extremo atraso sócio-econômico. Mas muitos outros elementos podemos acrescentar à lista, inclusive aqueles expedientes tradicionalíssimos para a manutenção e expansão do controle político sobre um povo, tais como a extrema deficiência educacional com altas taxas de analfabetismo, a fome endêmica que submete populações inteiras à necessidade de amparo social paternalista, o coronelismo, violência institucional, dentre tantos outros males que afetam gravemente aquela população.

Durante todos esses anos, sobretudo nos últimos 60 anos, mesmo no período mais intenso de lutas populares, entre as décadas de 1960 e 1980, coincidente com as lutas contra ditaduras em todo o continente, o povo paraguaio jamais esteve tão próximo de ver-se construindo um processo de libertação, como está agora.

A esperança do povo paraguaio surge com a entrada na vida política de um Bispo católico, ou seja, um representante de uma das instituições que, ao longo da história, mais ajudaram a legitimar o regime opressivo e repressivo naquele país.

Fernando Lugo é mais um paraguaio que nasceu de forma comum, em meio a uma realidade comum em seu tempo, ou mesmo nos tempos atuais, que não viram grandes evoluções sociais naquelas terras.

Um garoto pobre, nascido em uma família pobre e de forte tradição católica, do humilde município de San Pedro del Paraná, que muito cedo ingressa na vida religiosa, no Seminário dos Missionários do Verbo Divino.

Tendo atuado no Equador, como missionário, logo após seu aprofundamento de estudos voltou ao Paraguai, como Bispo na região mais pobre do país, onde voltou a ter contato com a realidade que lhe era tão familiar, da pobreza, da miséria, da exploração e da opressão.

Para um homem que não se deixa levar pelos encantos da riqueza, ou pela sedução do individualismo, tal experiência de vida, desde a infância pobre, até sua atuação em comunidades carentes, só poderia resultar no florescimento de uma consciência política de caracteres populares, movidos pelo amor ao próximo, o que levou Lugo a optar, mesmo a contragosto de Roma, pela Teologia da Libertação.

Se tal opção, em países como o Brasil já leva a uma atuação social intensa, no Paraguai, sob uma crise social muito mais profunda, com uma classe política altamente corrompida e um Estado altamente repressor, as necessidades de atuação política e social de Lugo tornaram-se muito mais amplificadas. E foi essa a realidade que permitiu o ressurgimento da esperança daquele povo.

Em 2006, Lugo veio a ser um dos principais líderes dos movimentos populares contra as políticas entreguistas, neoliberais e corruptas de Nicanor Duarte, transformando-se em uma das mais importantes vozes dos povos oprimidos daquele país. E foi pelo clamor popular que o caminho de Lugo passou a ser guiado, até que em 2007 deixou seu cargo de Bispo da igreja católica para dedicar-se à candidatura presidencial, submetendo-se à exigência que vinha do povo, das ruas.

Diante de sua candidatura presidencial, lançada pelo povo, a reação da oligarquia paraguaia foi imediata, tendo os setores conservadores e liberais buscando todos os recursos para impedi-la, até mesmo lançando mão do não reconhecimento do caráter laico do Estado paraguaio, afirmando que seu desligamento da igreja católica, exigência legal para possibilitar a candidatura de Lugo, não seria válido, visto que a igreja não reconhecia o direito de um Bispo desligar-se da igreja.

Outra marcante estratégia da oligarquia paraguaia para impedir uma possível vitória de Lugo nas eleições, foi a absolvição e a libertação do ex-presidente Lino Oviedo, responsável por massacres, magnicídio de Luís Maria Argaña, duas tentativas de golpe de Estado, dentre outras. A manobra se deu em razão de supostos dados de pesquisas e projeções, que avaliavam a penetração de Oviedo entre o mesmo eleitorado de Lugo.

Entretanto, apesar de todas as tentativas desesperadas da oligarquia paraguaia, há menos de um mês das eleições no Paraguai, Fernando Lugo aparece em primeiro lugar nas pesquisas, mais de 10 pontos à frente do segundo colocado.

É cada vez mais marcante na campanha de Lugo a forte mobilização popular, levada a cabo por uma ampla coalizão de forças que incluem quase a totalidade de movimentos populares, sindicais, sociais e traz desde o Partido Comunista Paraguaio, até o Partido Liberal Radical Autêntico, além de outros partidos de esquerda e centro e o movimento Tekojoja, do próprio Lugo.

Marcante também é o grande apelo popular de Lugo junto aos setores progressistas de outros cantos do mundo, que acompanham a realidade paraguaia, em clara demonstração de sua importância como elemento de esperança para o início de alguma mudança da dramática realidade social do país. Destaca-se, nesse aspecto, o explícito apoio do Governo do Estado do Paraná, em cuja fronteira extensa com o Paraguai se localiza a usina de Itaipu. Tal apoio, inclusive tem levado à participação direta do Secretário de Comunicação do estado na campanha de Lugo, que até o momento tem todas as características de crescimento contínuo, com uma larga dianteira.

Hoje, mais do que nunca, a sensação é de que o fim de uma tragédia, a tragédia social paraguaia, está próxima de seu fim. E parece muito próximo o nascimento de uma nova nação, agora livre e soberana, justa e com possibilidade de construção de um futuro digno.

Está prestes a nascer um novo Paraguai.

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